sábado, 7 de dezembro de 2024

jornada

No dia em que o chão me foi arrancado debaixo dos meus pés, eu tomei uma decisão difícil.
Eu decidi ficar de pé.
Mesmo cambaleando, eu fiquei de pé.

E, por estar de pé, não pensaram que eu precisava de muletas.
Ao aprender a navegar um mundo sem chão, fortaleci meus braços, pois precisava carregar o peso do meu próprio corpo pelos espaços.



E, por estar tão forte, me consideraram muito eficiente.

E por ser eficiente, me joguei e dei meu tudo no trabalho.
E, por trabalhar bastante, me consideraram util.
E, por estar sempre ocupada, fui considerada resiliente. 

E por ser perseverante, fui incorporada dentro de um jogo de xadrez que eu não entendo as regras, não sei jogar.
E, por não saber jogar o jogo, eu blefei como uma grande atriz, e eu juro que tentei usar as máscaras que o teatro da vida dispõe.



E, por estar me mascarando, me fiz insuportável a mim mesma.
E, por não me suportar, cedi, caí, quebrei a cara e a máscara, e os dentes, e o coração ainda mais.
E, por estar quebrada, perdi o meu valor.
E, por não ter valor atribuído, não me enxerguei no escuro em que estava.
E, por não haver luz, vaguei perdida por muitos quilômetros, ou anos, ou galáxias...
E, por estar perdida, fiquei cansada.
E, por estar cansada, parei em qualquer lugar que estava aberto.
E, para ser aceita, eu sorri sangrando.
Por eu estar sorrindo, ninguém estava entendendo o motivo da minha dor.
E, por seguir caminhando, não entenderam a fraqueza do meu caminhar.



Meus ombros caídos deram espaço para alongar o meu pescoço, e por isso não perceberam que eu, na verdade, encolhera.
E, por estar menor, eu não cabia mais nas minhas roupas, ou nas minhas crenças.
E, por não acreditar em nada, não acreditei em mim mesma.
E, por não saber quem era, inventei um personagem.
E, por ser um personagem, eu fui quem eu sempre quisera.
E, por ser quem eu queria, me apresentei como palhaço.
E, por ser palhaço, eu usei minhas cores mais vibrantes, e fiz combinações bizarras de moda e de emoções.
E, por estar num circo, ninguém imaginou que eu fosse uma fraude.
E, por não ser verdade, eu logo evaporei e deixei de existir.
E, por 
não existir, eu cabia em qualquer lugar.

E, por caber em qualquer lugar, eu tinha qualquer formato.
E, por não ter uma forma definida, eu deixei que me definissem por mim.
E, por ter sido dita quem eu era, eu me odiei cada dia mais.
E, por me odiar, eu me afastei de todos os espelhos.
E, por não ter espelho, esqueci como era minha imagem.
E, por me esquecer, eu perdi meu nome.
E, por não ter um nome, ninguém nunca me chamou.
E, por não ser lembrada, eu esqueci até do que sentia.
E, por me esquecer, eu me lembrei da dor latejante.
E, por não estar mais dormente, eu gritei buscando alívio.
E, por gritar, me chamaram louca.
E, por ser louca, fui impedida de fazer parte.
E, por não me encaixar, cortei pedaços para caber.
E, por não estar inteira, qualquer coisa me agregava.



E, por me abrir pra qualquer coisa, qualquer pessoa entrava.
E, por estar sendo invadida, perdi o controle, e os cadeados, e me quebraram todas as trancas.
E, por não estar trancada, acabei sendo roubada.
E, por ter perdido muito, perdi tambem a noção.
E, por não ter nada a perder, entrei sem bater nas portas, e, por isso, muitas delas se trancaram.
E, por estar de fora, não me preocupei no que pensavam.
E, por não me preocupar, falei antes mesmo de pensar.
E, por dizer o que pensava, me tiraram a voz e as palavras.
E, por não ter palavras, fiquei em silêncio.
E, por estar quieta, me julgaram inadequada.
E, por não pertencer a nada, me fiz de ornamento descartável.
E, por ter sido descartada, me fiz escassa, desaparecendo do ângulo de visão dos olhares curiosos.
E, por ter estado longe dos olhos, acabei longe dos corações.


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