Desde que eu me conheço por gente eu gosto de ler, mesmo quando ainda não sabia ler.
Eu assistia às pessoas ao meu redor lendo e achava aquilo lindo, queria tanto pra mim. Não via a hora de aprender a ler. Tanto que aos 5 anos meu vizinho me deu uma cartilha.
Cartilhas eram livros de alfabetização usados num passado distante.
O vizinho me deu porque não tínhamos dinheiro para comprar.
Tive uma infância muito pobre.
Tão pobre que eu me lembro que quando chegava a temporada de chuva - não que no Brasil tenha uma estação de chuva, mas geralmente chove quando vai mudar da primavera para o verão, ou do outono para o inverno, enfim - a nossa casa ficava alagada, tantas eram as goteiras que tinha.
Minha avó morava na casa de baixo. No Brasil é comum esse tipo de construção, assim como - imagino eu - em muitos países pobres. Minha avó construiu sua casa, e com os anos, os filhos foram construindo ao redor no mesmo quintal, ou verticalmente.
Quando a chuva parava demorava vários dias para que parasse de chover dentro de casa.
Tínhamos falta de muitas coisas, mas duas delas nunca nos faltaram.
Nunca nos faltou o que comer, ainda que por muitas vezes teríamos de dividir um ovo para 3 ou 4 pessoas, ou dividir um pãozinho francês para 3, ou que só tivesse arroz e um caldinho de feijão. Mas graças a Deus, nunca passamos fome.
E também nunca nos faltou amor.
Crescemos privados de tudo: tênis para fazer aulas de educação física, livros para a escola, presentes no Natal, roupas novas. Mas amor nunca nos faltou. E eu sempre soube, mesmo naquela época, que amor era algo mais importante que um tênis ou uma roupa nova. Porque amor, eu sempre soube, o dinheiro não pode comprar.
Quando tínhamos um pouco mais de dinheiro meus pais não faziam questão, e nos compravam presentes e roupas.
Mas na maioria dos casos não tínhamos nem o suficiente para pagar as contas e comprar comida até o final do mês.
Mas amor... Ah! Esse sempre esteve presente.
Minha mãe, nos erros e acertos, sempre nos deu amor de sobra. E com isso crescemos nos amando.
Aprendi desde sempre a amar outras pessoas.
Mas minha mãe sempre teve um problema sério. Ela nunca se amou de verdade.
Então eu cresci sabendo amar aos outros, mas não aprendi a me amar.
Me odiei a maior parte da minha vida. Na verdade eu nem me lembro de quando foi que comecei a me odiar, tanto tempo já faz.
Mas como eu disse no começo, eu sempre gostei de ler.
Quando eu ainda estava aprendendo, minha mãe lia pra mim. Lembro que ela juntou por vários meses um dinheiro para me comprar um único livro de uma enciclopédia sobre o universo, porque ela sabia que eu era apaixonada pelas estrelas. A ideia original era comprar a enciclopédia toda, mas o dinheiro só deu para o livro que falava sobre as estrelas. E eu amei aquele livro.
Quando estava na 2a. série eu ganhei um prêmio por um texto que escrevi, onde eu contava meu desejo e sonho de ser uma astronauta um dia.
Ganhei um certificado rosa, que dizia que eu tinha tirado o primeiro lugar, e um brinquedo.
Hoje mesmo estava me lembrando desse certificado, e de como ele foi dissolvido em uma das "enchentes" na nossa casa. Recolhi seus pedaços como quem recolhe seu coração partido. E não tinha o que fazer a não ser jogar no lixo.
Quando eu finalmente aprendi a ler, minha mãe conseguiu emprestado um livro chamado "O caso da borboleta Atíria", da maravilhosa Coleção Vaga-lume.
Nesse livro tinha uma borboleta chamada Vanessa. Não era um personagem importante ou fundamental, mas era uma borboleta que tinha o meu nome, num livro!
Livros para mim eram mágicos, e pensar que meu nome estava numa estória num livro era algo fenomenal para uma Vanessa de 6 anos de idade.
Foi ali que aprendi o significado do meu nome.
Lembro da minha mãe dizendo:
"- Você sabia que seu nome significa borboleta? E tem uma borboleta nesse livro aqui que tem o seu nome."
Ela não precisou dizer mais nada, eu já estava fascinada por aquele livro e queria conhecer a tal borboleta Vanessa.
Pensando nisso agora, percebo que desde cedo eu aprendi que as coisas tem um significado. E por imaginar que meu nome significava borboleta, eu aprendi a amar o meu nome.
Eu sempre amei o meu nome.
Eu não conseguia me amar, mas eu amava o meu nome.
E quando criança, não importava que eu não tinha um tênis e por isso tinha que ficar de fora das aulas de educação física. Não me importava que o tênis que me arrumaram tinha um furo e as outras crianças faziam piada de mim. Não me importava que quando chegasse em casa num dia de chuva a gente ia ter que mover as camas para a cozinha porque era o único lugar onde não tinha goteira. E por mais que eu tivesse vontades, não me importava que só tinha arroz com caldo de feijão para comer no jantar. Tudo isso era pequeno diante do amor que havia em casa, e porque o meu nome significava borboleta.
O tempo passou, e alguém ficou grávida e comprou um desses livros de nomes. E eu fui ver o meu nome no livro. E lá dizia que Vanessa era um nome que significava "linda borboleta".
E naquele momento eu aprendi que as coisas não só tem um significado como também muitas vezes o significado delas é mais profundo.
Eu estava entrando na adolescência e nada podia me segurar, porque meu nome significava "linda borboleta".
Aprendi a amar borboletas por causa do meu nome.
Estudando ciências e aprendendo sobre mutações, aprendi que as borboletas são lagartas antes de serem borboletas.
E lagartas são nojentas, ninguém quer uma por perto. Eu não queria uma por perto, tinha nojo, repulsa.
Mas que coisa incrível! Um dia essa lagarta sente um chamado da natureza pra se fechar num casulo, e voilà! Depois de um tempo nasce uma borboleta.
Foi quando, já no final da adolescência, que eu escrevi meu texto "A angústia da borboleta".
Pensar que um ser desprezível, que ninguém dá nada pra ele, um dia pode se transformar numa borboleta... Era algo que sempre me intrigou.
Com o advento da internet eu descobri que o nome Vanessa foi criado por um escritor irlandês, Jonathan Swift.
Pensar que meu nome foi inventado por um escritor, uma pessoa que cria livros, foi algo que me fez imensamente feliz.
Embora haja outras explicações, umas dizendo que é de origem grega, e por aí vai, mas imaginar que um escritor inventou meu nome me fez imensamente rica.
E foi aí que aprendi que as coisas tem o significado que damos a elas.
Eu estava entrando a fase adulta da minha existência, ainda não me amanda, ainda não me aceitando, ainda odiando cada detalhe desse ser que eu não tinha escolha a não se conviver com, mas eu estava cada vez mais apaixonada pelo meu nome.
Meu nome era algo especial, e ninguém jamais, JAMAIS poderia roubar isso de mim.
Eu podia ser alguém que não tinha importância, alguém que por ser pobre não foi contratada para trabalhar numa multinacional. Alguém que, por ser pobre e "preta" não foi contratada para ser a recepcionista daquela grande firma de advocacia.
Eu podia ser alguém que, por ser pobre e "preta" não teria nunca uma oportunidade de melhorar de vida devido ao seu CEP (CEP é o zip code, por onde todo mundo fica sabendo onde você mora. E no Brasil o CEP é um divisor de águas entre ricos e pobres).
Eu poderia estar fadada a morar o resto da minha vida no mesmo endereço, ganhando um salário mesquinho e agradecendo à Deus por ter um emprego. Eu poderia ser uma pessoa que, apesar de todo o meu potencial e inteligência, e força de vontade, seria negligenciada a vida toda, mas tinha algo que ninguém poderia mudar a meu respeito, e que pra mim era muito mais importante do que eu o lugar aonde eu morava: meu nome era especial. Meu nome foi criado por um escritor que estava apaixonado e seu amor era proibido. Meu nome tinha um significado maravilhoso.
E foi então que eu aprendi que as coisas não só tem um significado, e que esse significado muitas vezes é mais profundo do que imaginamos, e que o significado que uma coisa tem pra nós reflete em toda a nossa existência.
Eu tinha um nome lindo, espetacular, que significava "lindas borboletas" e que foi criado por um escritor apaixonado.
Amor e amar sempre esteve no meu destino, desde que eu nasci. Eu tenho amor até no nome, na história por trás do meu nome tem amor.
Se eu aprendi a finalmente me amar? É sobre isso que eu queria falar nesses retalhos.
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